sexta-feira, junho 18, 2010

Crônica: O Primeiro Assalto


Já há uns bons seis anos pratico uma arte marcial, o kung fu, que, por sinal, significa “trabalho árduo” do corpo, da mente, coisas assim. Muitos pensam naquele estereótipo de que sei bater em todo mundo, sei lidar com qualquer situação perigosa, sei isso, sei aquilo, sei tudo da violência física. Até o cansaço se cansou, porque me cansei de incansavelmente explicar que não é bem esse o caso. Na verdade não é nem um pouco esse o caso. Arte marcial que é arte marcial não serve para agressão. Olha eu começando a explicar novamente... disse que era incansavelmente? Pois bem, agora cansei.
Enfim, numa bela tarde de um sábado ou domingo, não lembro bem, voltávamos eu e meu irmão de um campeonato lá no Ginásio Mauro Pinheiro, no Ibirapuera. Caminhávamos tranquilamente, por uma avenida, em direção à estação Paraíso do Metrô. Eu degustando um sorvete, ele confabulando comigo.
Note bem, estávamos com mochilas e armas, facão, bastão, unhas, dentes, quando um sujeito de aspectos delinquentes se aproximou e nos abordou com a seguinte frase: “Ô, to com uma faca aqui, não corre, senão te furo.” Enquanto isso, meu irmão sorrateiramente se afastou e fez um gesto meio que incompreensível para seguirmos reto... eu acho, pois o tal indivíduo não tinha faca alguma... eu acho. Sim, ele me deixou só com o cara da suposta faca e também com uma inevitável falta de ação. Vamos à luta.

(– E aí, cadê o
kung fu, meu? Vai, arrebenta o cara!)
(– Ei, ei, também sou gente, não uma máquina programada para lutar. E é minha primeira vez numa situação dessas, tem que ir com calminha, gatinho.)

Aguardando a imaginária facada, permaneço estático, ainda inativo, estou em “loading...”. O sujeito fora da Lei olha para minha mão direita, deslumbra-se e:


– Vai... ... ... passa esse sorvete aí.


É o poder da mente (e da sorte). Eu disse que kung fu não é pancadaria.

quarta-feira, junho 09, 2010

Fim de quem ama


Não há fim para quem ama. Há sempre um rastro perseguindo, uma cicatriz que nunca desaparecerá. Uma dor, uma mágoa e até uma risada. Quem ama se condena e jura votos inconscientes de tristeza. É uma promessa de felicidade sem medidas de consequências.
Assim que aparece à porta do coração uma gota de dúvida, o castelo de amores parece que começa a desabar. Esfacela-se aos poucos, curtindo a agonia de cada instante de seu desmoronamento, como se fosse puro masoquismo. O mundo diverge, some ao olho nu. Resta o ponto de interrogação. Um momento. Outro momento. Mais um momento. Nada. Cadê seu par perfeito, pergunta? O que segue à indagação é o escuro. Ninguém entende o porquê.
Cabe a quem duvida encontrar a saída. Não há motivos para desespero, pois sempre haverá uma porta para a luz. Mesmo assim, encontram-se razões para punição. Punição: dói pensar, dói esperar, dói agir. Não há como fugir da dor. Então que venha, e venha com tudo, porque só assim o aprendizado que chega de bagagem não é esquecido.
Que seja hoje, talvez amanhã, quem sabe outro dia, o amor espera pela certeza e não se cansa. Bem, uma hora se cansa. Enfraquece, torna-se raro, rarefeito, entra na desistência, avesso à esperança, deita na cama. Espera, dorme, acorda com um susto e logo descobre não ser verdadeiro. Chega a dúvida, torna-o transparente e menos complacente. Questiona a identidade, corta suas pernas e ele cai. Cai, cai, cai. Cai na memória. O sofrimento torna-se cura e toma conta, acariciando as entranhas de ambas as partes do coração, já que está partido. O partido demora a aquiescer. E como demora, Deus do céu! Às vezes dá vontade de até apagar a memória, papel do tempo. Porém, como um brilho eterno de uma mente sem lembranças, qualquer coisinha, um cheiro, uma fotografia, um texto, uma palavra, uma música, uma cartinha e até o vazio da mente traz à tona a memória do amor perdido ou renegado. Cheirar, ver, ler, ouvir e pôr em ausência o pensamento causam disritmia no coração e, talvez, um aperto na garganta com um comichão nos olhos. Quanta sinestesia.
A efemeridade dá as caras e traz o tempo num piscar de olhos. A dúvida e a dor que pareceram perdurar por anos agora transitam na mente como imagens de instantes. Os períodos mais marcantes vão sendo guardados na caixinha sinestésica, para que num momento as sensações mostrem que nada se cria, nada se perde; tudo se transforma. O amor em lembrança.
Fim de quem ama: a persistência da memória.